quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

O elo perdido entre "Voltei, voltei" de Dino Meira e "Vem Devagar, Emigrante" de Graciano Saga



A vida do emigrante português foi sempre uma temática muito explorada pela música popular portuguesa. A ideia romântica de um povo em êxodo, espalhado por países ricos a exercer profissões de baixo estatuto, com grandes dificuldades e espírito de sacrifício tem alimentado vários artistas, mostrando-nos que o romantismo, embora bonito, nem sempre é fácil de digerir. E provoca azia.

O momento do regresso à pátria ainda que fugaz provoca todo o tipo de emoções e é alvo de orações durante todo um ano de sofrimento. Ano que começa a 1 de Setembro e acaba a 31 de Julho. Portugal, um país de descobridores, marcado pela saudade, pelo desejo constante de regresso.

Um país de viajantes, com o coração em Portugal e o corpo num subúrbio em Paris (e podia ser Goa, Mombaça, Japão... os tempos mudam o sentimento é o mesmo). Viajantes que trocaram as caravelas por Renaults 5 em segunda mão e Roulotes.

E é esse o tema central das duas obras que analiso aqui: "Voltei, voltei" de Dino Meira e "Vem devagar Emigrante" de Graciano Saga.

Comecemos por "Voltei, voltei". Dino Meira passou fugazmente por este Mundo. Deixou-nos com apenas 43 anos, o que faz dele o Jim Morrison da música portuguesa. Não só pela qualidade lírica mas também porque Jim Morrison quando morreu tinha o aspecto de um emigrante português de 43 anos de idade (e, que eu saiba, nunca carregou um saco de cimento na vida). Será sempre conhecido pelos hits "Voltei, voltei", "Meu querido mês de Agosto", "Juli Juli Julia", "Adeus Paris, até Lisboa", "Zum zum zum", "Viver viver amar amar" e "Oh Michelle". Era possuidor de uns frondosos caracóis e a sua tendência para a repetição de vocábulos indiciava uma certa gaguez (cf. "Voltei, voltei", "Juli Juli Julia", "Zum, zum, zum" e "Viver viver amar amar").



Na música "Voltei, voltei" Dino Meira expressa um sentimento de ansiedade relativamente ao seu regresso à Terra Mãe. Dino Meira "já não suportava ficar longe" do seu lar. Já estava cansado de ser explorado, do frio do país e das pessoas, das baguetes, da Torre Eiffel, de tudo. "Tanto pediu esse milagre" que, eis que chega Agosto e toca a fazer as malas. É a hora do regresso.

E, depois de tanta ansiedade, chega a Portugal! O que, nas palavras de Dino Meira, é um "milagre". Um "milagre", repito e deixo tempo para pensar...........................................................................................................

A não ser que Dino Meira tenha regressado de França montado num unicórnio ou a bordo de um tapete voador, é bem complicado descortinar a que é que ele se está a referir quando equipara a sua chegada a Portugal a um "milagre". É este o grande enigma de Dino Meira. Qual é o seu "milagre"?

Será que o sacrifício de estar emigrado em França era tão grande que até Agosto, esse extraordinário acontecimento de 31 dias que se verifica todos os anos logo a seguir a 31 de Julho, parece obra do nosso Senhor? Parece-me que esta é a interpretação mais óbvia. Mas algo me diz que o autor de "Arrebita" e de "O Homem vestido de branco" era dado a outras subtilezas.

Não estou a ver Dino Meira, que por debaixo daquela carapinha era guardião de uma sólida e vigorosa massa encefálica, a rezar a Nossa Senhora no dia 31 de Julho para que no dia seguinte apareça 1 de Agosto e ele possa, por amor de Deus, regressar à terrinha. Ele era mais complexo do que isso. Mesmo correndo o risco de abusar de referências aos belos caracóis desta personagem, não posso deixar de afirmar que a profundidade da sua alma era de tão difícil penetração como o emaranhado dos seus caracóis (reza a lenda que os caracóis de Dino Meira possuiam o dom da imunidade aos piolhos. Eram tão labirínticos que estes morriam à fome antes que pudessem degustar o couro cabeludo do artista). Mas isso não me deteve. O desafio era grande mas posso anunciar que, depois de muita reflexão e de noites perdidas a ouvir em loop esta obra emblemática da música produzida por homens brancos que usam afro, consegui quebrar o enigma de Dino Meira, ou como este é conhecido em meios mais eruditos, o Enigmeira.

A chave para a explicação do "milagre" está no refrão, que todos trauteamos com agrado mas a cuja densidade poucos prestam atenção:

"Voltei, voltei, voltei de lá.
Ainda ontem estava em França e agora já estou cá"

Pois, o grande "milagre" de Meira era ter conseguido chegar vivo depois de andar que nem um Fangio pelas estradas de três países e pelos Pirinéus. O sofrimento era muito, as saudades ainda mais. E é o peso de tudo isto no acelerador que fez com que o emigrante ontem estivesse em França e hoje em Portugal. E isto com quase 2000 km no bucho é milagroso.

Segundo o Google Maps, hoje em dia é possível fazer a viagem Paris Lisboa em 16 horas e 26 minutos. Mas muito mudou desde os anos 80, em termos de parque automóvel e de qualidade das estradas. E quando ouvimos esta música não pensamos num BMW a circular numa auto-estrada, pensamos num Renault 5 com 8 ocupantes a circular numa estrada nacional, com o tejadilho cheio de bagagem e paragens ocasionais para emborcar vinho tinto com gasosa. Fazer França-Portugal nestas condições em 24 horas é milagre, como nos diz Dino Meira. E é milagre que tanto emigrante tenha sobrevivido a esta tentativa de genocídio musical. Ainda hoje fico fascinado com a taxa de sobrevivência de viagens entre França e Portugal com esta cassete no auto-rádio.

Esta constatação levou a que um obscuro, mas não menos brilhante, artista surgisse para salvar os nossos emigrantes de uma morte na estrada.



Esse artista é Graciano Saga, autor do hit "Porque choras, criancinha?", que inaugurou todo um género musical que pode ser classificado como goth pimba. Este vem criar o antídoto para "Voltei, voltei" (completando a díade da Segurança Rodoviária da música Pimba). Esse antídoto é "Vem Devagar Emigrante". Já muito foi dito sobre esta anúncio de serviço público em forma de música popular, por isso vou contar a versão resumida.

A exemplo do apelido do autor, esta música narra a saga de um emigrante sem nome, que fazia uma viagem entre a Alemanha (país que transpira sensatez e racionalidade, ao contrário da França que transpira suor através de axilas peludas) e Portugal, possivelmente a ouvir Dino Meira, com o objectivo de visitar o seu pai que estava às portas da morte. O pathos ditou que o emigrante acabasse por falecer antes do seu pai, bem como a sua mulher e o seu "filhinho" numa estrada em Espanha (ou talvez em Benavente, fica a dúvida) na sequência de um choque frontal. As causas apontadas são o cansaço de horas de viagem e, como o uso da palavra "devagar" no título parece indicar, o excesso de velocidade. Esta tragédia culminou com a morte por desgosto do "paizinho" ao saber da notícia.

Incrivelmente toda a gente morre nesta música, menos o narrador que fica aqui para avisar todos os emigrantes dos perigos da estrada e do risco que correm se se continuarem a sujeitar às mensagens subliminares de Dino Meira. "Há tempo para cá chegar" diz Graciano.

Estas duas músicas surgem-nos como o yin yang da música pimba de prevenção rodoviária. Enquanto Dino Meira tenta puxar os emigrantes para uma morte certa ao volante, Graciano Saga pretende incutir regras e incentivá-los ao cumprimento do código da estrada, no que diz respeito ao excesso de velocidade e à necessidade de paragens de descanso, algo essencial em viagens longas. Para citar o velho ditado citado por Graciano Saga: "Mais vale um minuto na vida do que perder a vida num minuto". E eu acrescento este velho ditado: "Não há país mais belo que Portugal, principalmente se não estivermos estropiados devido a um choque frontal".

Sigam este blog no facebook se quiserem que Agosto dure 365 dias. 

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Um Presidente falador




Se eu não me candidato a Presidente da República, e por mais do que uma vez isso já me foi sugerido (principalmente por objectos inanimados e carraças falantes), é porque não tenho carisma, não fui abençoado com o dom da oratória e porque possuo a profundidade de pensamento de uma Ruth Marlene ou de um pelicano com Alzheimer.

Aparentemente, este tipo de características não são obstáculos para Cavaco Silva, o que não deixa de ser uma esperança para mim, já que há carraças bastante persuasivas e pedaços de ardósia que colocam argumentos bastante convincentes a favor de uma eventual candidatura minha à Presidência da República. E como outra das minhas características que me levam a pensar que jamais me deveria a candidatar a este cargo é a pouca firmeza das minhas convicções, é bastante provável que um piaçaba me venha a convencer a embarcar numa aventura destas. E como almocei feijoada à transmontana com molho de iogurte tenho passado bastante tempo com piaçabas.

A verdade é que ser Presidente da República não é muito difícil. A prova disso é que há pessoas que conseguem avaliar positivamente o mandato de Cavaco Silva sem se rirem. Inclusivamente, há pessoas que apoiam Cavaco Silva como se fosse uma coisa normal, sem que os seus amigos e familiares os tentem encaminhar para opções mais saudáveis, como heroína, a IURD, o bestialismo ou o clube de fãs do Tony Carreira.

Ser Presidente da República exige apenas uma grande competência: saber gerir silêncios. Gerir silêncios, como quem está para dizer alguma coisa importante mas acaba por não dizer. Tendo isto em conta, diria que os candidatos ideais à Presidência da República seriam bons exemplos de gestores de silêncio: um mimo, uma raposa morta e o Malato amordaçado.

A minha tese segundo a qual saber gerir silêncios é a única competência exigível ao detentor daquilo a que se convencionou chamar o mais alto cargo da Nação (já que todos sabemos que ser o número 10 do Benfica é o mais alto cargo da Nação) pode fazer com que muita gente avalie como positivo o mandato de Cavaco Silva. De facto, algumas das decisões mais correctas de Cavaco foram decisões do tipo:

Diálogo interior: "Como é que é? Comento isto ou não? É melhor não. Vou ficar calado que dá menos trabalho".

Isto leva à ideia errónea de grande parte das pessoas segundo a qual o Professor Cavaco é um homem ponderado, um homem de tabus, um homem que sabe estar calado. Mas enganam-se...

Cavaco falou quando quis celebrar o dia da raça a 10 de Junho. Não que não seja importante que se crie um dia da raça em que cada pessoa se vista de acordo com a sua raça de cães predilecta (seria a oportunidade de que tenho estado à espera para finalmente estrear o meu fato de chiuhahua), julgo que era a isso a que Cavaco se referia. Mas desde a escola primária que eu sei que 10 de Junho é o dia de Portugal e das comunidades, o que me coloca à frente de Cavaco numa eventual corrida à Presidência.

Cavaco falou sobre o estatuto dos Açores. Desconheço o que quer que seja sobre esta questão e um Presidente não devia perder tempo com estas inutilidades. Quando eu for Presidente vou preocupar-me apenas com coisas que sejam importantes para os portugueses como presunto, a vida privada de pessoas que não interessam a ninguém e filosofia alemã do século XIX.

Cavaco falou quando promulgou o casamento entre pessoas do mesmo sexo, fazendo questão de dar a entender que era contra. Embora seja uma posição preconceituosa, intolerante, mais próxima da Idade Média do que de uma sociedade em que somos todos iguais perante a lei é uma posição à homem. E isso é sempre de elogiar. No entanto, fazer coisas à homem é algo que está sempre associado a alguma insegurança sexual (case in point: Zezé Camarinha). É paradoxal, mas a homofobia é uma coisa bem mais homossexual do que uma parada do Orgulho Gay.

Cavaco falou quando quis defender o seu assessor que, lembre-se, andou a soprar boatos de escutas para jornais. Disse que o seu e-mail estava "vulnerável" e sobre quanto isso o preocupou. O que em termos de discurso político é equivalente àquelas janelinhas do anti-virus que aparecem no canto inferior direito.

Cavaco falou quando faltou ao funeral do único Prémio Nobel da Literatura português. Justificou a sua ausência por estar nos Açores na sequência de uma promessa que tinha feito aos netos. Faltar ao funeral até é compreensível, a não ser que Cavaco tivesse na manga algum dito espirituoso e profundo sobre a perda deste grande vulto da nossa literatura ou um número de sapateado surpreendente, o que duvido, a sua presença é perfeitamente evitável. A questão é: levar os filhos aos Açores? Eu não tenho nada contra os Açores, mas isso é o equivalente em viagens a dar meias com raquetes no Natal. E um Presidente que dá meias com raquetes aos netos o que é que tem para dar aos portugueses? Uma caixa de Ferrero Rocher e umas ceroulas?

Cavaco Silva foi muito bom Presidente, excepto quando falou. Se tivesse trocado a maior parte das suas intervenções por canto gregoriano em falsete, dança do ventre ou qualquer combinação das três actividades anteriores teria sido o melhor Presidente de sempre. Assim não...