terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

O país dos Doutores


Descobri algo em que nunca tinha reparado mas que me irrita um bocadinho. Pelo menos o suficiente para vir aqui escrever sobre isso. Pessoas que, quando estão a citar algo que alguém lhes disse, em discurso directo, dizem o seu próprio nome. Isso não vos irrita? Ah! Não perceberam... Então vou explicar melhor... Imaginem que alguém disse ao Rufino que era melhor ele aproveitar agora, que ainda lhe sobram alguns trocos, para ir comprar, finalmente, o busto de Napoleão para pôr em cima da lareira. Imaginem que o Rufino quer descrever esta conversa a outra pessoa qualquer... ao João António, por exemplo...

- Ele disse-me: "Ó Rufino, se calhar é melhor aproveitar agora, que ainda te sobram alguns trocos, para ir comprar, finalmente, o busto de Napoleão para pôr em cima da lareira", e foi o que eu fiz...

E o João António responde, por exemplo:

- Não pode ser, Rufino... Ele, a mim, disse-me: "Tem cuidado com o Rufino, João António... Vê se ele não estoura o dinheiro todo na porcaria do busto de Napoleão...".

Já é um bocado estúpido tentar recriar textualmente a conversa. Se não o vamos conseguir nem devemos tentar, é para isso que serve o discurso indirecto. Mas pôr a outra pessoa, que estamos a citar literalmente, a dizer o nosso próprio nome é completamente absurdo e irrelevante, já que a partir do momento em que estamos a falar de algo que nos foi dito é escusado estarmos a pôr o nosso nome lá pelo meio... É como se estivéssemos a sublinhar que a pessoa que estamos a citar até sabe o nosso nome. E, mais do que isso, trata-nos com tanta familiaridade que até faz questão de usar o nosso primeiro nome na conversa. Pior do que isso seria se o Rufino dissesse:

- Ele disse-me: "Ó Professor Doutor Rufino..."...

Aí, eu diria ao Rufino, ou melhor, ao Professor Doutor Rufino, que até nem é mau tipo, para pôr o busto de Napoleão num sítio que eu cá sei...

"Mas que sítio?"

No cu...

Porque pior do que as pessoas que põem os outros a tratarem-nos pelo próprio nome são as pessoas que exigem que lhes chamem Doutor ou Professor ou Engenheiro...

Porque é que o Amílcar, que até era conhecido como Pívias na adolescência (entretanto evoluiu para Pivz, alcunha essa que ainda usa no messenger), há-de exigir a outra pessoa que o trate por "Doutor", só porque andou 7 anos a pagar propinas numa privada qualquer? Em que país, para além de Portugal, é que é mais prestigiante tratar alguém por "Doutor" ou "Engenheiro" do que pelo nome próprio? São pessoas que preferem escudar-se num suposto prestígio que lhes instituíram, do que assumirem uma identidade própria. O que é sintoma de que, provavelmente, não a têm.

"O que é que disse, Dr. Sérgio? Não percebi nada... Dá-me a ideia que o Senhor Doutor está armar-se em intelectual..."

Eu explico-te, apesar de me estares a provocar com isso do "Doutor Sérgio"... Deixa-me dizer-te que tens muita graça... Isso é por eu ainda não ter acabado o curso? Ou é por eu ter acabado de criticar as pessoas que exigem ser tratadas por "Doutor"? Para a próxima vez parto-te os dentinhos...

Ao exigir que as tratem pelo seu grau académico, as pessoas estão a mostrar que valem pouco mais do que isso... Antes de ser Doutor Sérgio eu era o Sérgio. E, darei sempre primazia ao meu lado "Sérgio" do que ao meu lado de "Doutor Sérgio".

"Mas o Dr. Sérgio ainda não acabou o curso."

Só estava a explicar-te, que foi o que me pediste, ó Dr. "Vozinha-estúpida-dentro-da-minha-cabeça-que-pelos-vistos-já-acabou-o-Doutoramento"...

"Não é Doutor, é Engenheiro... Tirei a licenciatura de Engenharia de Minas na FEUP..."

Olha a grande coisa! E o que é que fazes agora? Porque é que em vez de estares numa mina, a fazer aquilo para que estudaste, estás dentro da minha cabeça a chatear-me por dá cá aquela palha? Não estavas melhor a trabalhar na secção de frescos do Continente?

"Já mandei para lá o meu Curriculum Vitae, mas tenho habilitações a mais... Também não gosto de estar na sua cabeça, ó Dr. Sérgio. Não fui eu que escolhi estar aqui... Mas não arranjei melhor... A única vantagem é que isto é bem arejado"

Tenho ali um anti-psicótico de que és capaz de gostar, ó Senhor Engenheiro de Minas... Vê lá se te calas que já estás a meter nojo...

O que me irrita mais é que o argumento que estas pessoas usam para serem tratadas pelo seu grau académico é a necessidade de manter as distâncias e de se darem ao respeito. Até espumo de raiva quando ouço este argumento... Metaforicamente, é claro. Não me ficava nada bem espumar de raiva em frente ao Senhor Engenheiro... Aliás, a minha reacção normal, quando ouço este argumento é:

- Com certeza, Senhor Engenheiro - enquanto olho para o chão, faço uma vénia e saio da sala silenciosamente para não perturbar o sossego do Senhor Engenheiro e, antes de sair, ainda faço questão de perguntar - Precisa de alguma coisa Senhor Engenheiro? Um cafézinho?

Mas agora que estou entre amigos e não preciso de ser tão cobarde ou submisso posso dizer o que realmente penso sobre este argumento e espumar de raiva à vontade (não muito alto porque o Senhor Engenheiro está na sala ao lado e ainda me ouve). Que raio de respeito é que vocês querem manter com esta porcaria do grau académico? Fique sabendo "Senhor Engenheiro" que enquanto finjo beber os seus belos ensinamentos e opiniões sobre o que nos rodeia, enquanto me esforço para ser a pessoa que se ri mais alto das suas piadas, enquanto dou tudo por tudo para preparar o café como o Senhor Engenheiro gosta, estou realmente a pensar em como seria bom esvaziar as piscinas do Slide & Splash, untá-lo de banha de porco e atirá-lo do Kamikaze (e isto é quando estou bem disposto). Fique sabendo, Senhor Engenheiro, que a distância que tanto gosta de criar só serve para que outros potenciais "Senhores Engenheiros" o queiram pôr a milhas. Fique sabendo que o respeito não se consegue com distância, consegue-se com proximidade, honestidade, genuinidade e com um hálito mais agradável, meu grande bisonte albino e hermafrodita... (acho que já me estou a esticar... Amanhã vou ter que caprichar nos cafés e nas fotocópias para compensar esta falha...)

Como defesa, arranjei um estratagema que é fazer questão de tratar todos os "Doutores" e "Engenheiros" que conheço apenas pelo grau académico. O que fica extremamente ridículo... E dá-me um gozo tremendo... É tão bizarro tratar alguém só por Doutor. Do tipo:

- Ó Doutor, isto não me parece assim tão bem porque não sei quê, não sei que mais...

É que, com essa atitude, eles só conseguem isto: que eu os trate como uma sopeira hipocondríaca trata o médico de família... "Ó Doutor isto, ó doutor aquilo...". É o que os Doutores merecem...

O pior destas coisas é que, por causa da cagança de meia dúzia de "Doutores" e "Engenheiros", as pessoas, na dúvida, começam a tratar toda a gente por "Doutor" e "Engenheiro". O que acaba por sobrar para tipos como eu, que odeiam quando são tratadas por "Doutor" e "Engenheiro".

"E que ainda por cima não acabaram o curso"


Já paravas com isso, ó Engenheiro Donaldim! Graças às tuas intervenções, este post parece um número de ventriloquismo...

"Isso faz de ti aquele senhor careca que costuma estar na árvore das patacas"

Nem sei que te diga... Agora até tiveste piada... Nem te vou perguntar onde é que o Donaldim esconde a mão do senhor careca...

Concluindo, detesto que me chamem Doutor. Gosto de pensar que valho muito mais do que o meu grau académico...

"Isso é porque não tens nenhum..."

9 comentários:

Unknown disse...

Isto dos "Doutores" fez-me recordar a Praxe...

... e cada vez menos acho que a associação entre os temas não é de todo descabida!

Se reparares, no mundo do trabalho como na praxe, são os mais inseguros que vêem no "título" ou no estatuto a garantia do respeito! Se calhar são mesmo os que se sentem reduzidos a uma categoria (os que nem têm o curso) os que forçam a utilização do "Sim, senhor Doutor".

Abraços

Woody disse...

Concordo plenamente! A praxe é um excelente laboratório do comportamento humano… Foi graças a ela que eu aprendi os mecanismos por detrás de muitas questões que sempre me atormentaram, como, por exemplo, a possibilidade de colocar pessoas aparentemente normais a fazerem maldades, um pouco como o povo alemão no tempo do nazismo. A praxe tornou-me consciente do perigo de sermos conformistas. Essa questão do Doutor é uma metáfora disso mesmo, a necessidade de integração que leva a que essas pessoas façam coisas que não fariam habitualmente, escudando-se num grupo é a mesma que leva a que exijam um tratamento especial… Tratamento esse que, segundo elas, as vai integrando cada vez mais nesse grupo… No meu caso, a praxe foi muito educativa porque acabei por aprender exactamente o contrário daquilo que me queriam ensinar e, ainda hoje, consigo relacionar muita coisa com a praxe, tal como fizeste…

Beijinhos

Unknown disse...

Mas olha, foi uma experiência útil! Foi na praxe que conheci o Tiago (dançamos a música do tigrão juntos... quando me lembro não consigo parar de rir!), era um pretexto para estar com amigos e rir-me, dava-me gozo estar lá com total abertura à experiência mesmo crescendo a certeza de que não ia ser Duxa nem nada que se parecesse!

Apesar de tudo, foi uma boa experiência!

E sempre serviu para aprender que, como dizes, sou Ana, muito antes de ser outra coisa qualquer!

Iris Restolho disse...

O que ainda me faz mais confusão do que a utilização do pr+oprio nome durante a descrição de uma conversa em vez do discurso indirecto, é quando as pessoas se referem a si como outra, ou seja na terceira pessoa:

"A Iris deixa sempre mensagens da tanga!", em vez de: "Eu deixo sempre mensagens da tanga!"

Mas pelo menos estou de volta, após alguma ausência forçada.

Ainda me doiem os abdominais de tanto rir.

Anónimo disse...

E mesmo assim, isso do Dr. não é para todos. Sou licenciada, logo sou Dra., mas não sou médica, nem advogada, nem farmacêutica, nem engenheira, nem arquitecta, logo não sou Dra. Percebeste a lógica? Eu também não. Mas ainda bem que me tratam por Rute e, geralmente, até me tratam por tu, o que eu agradeço. Portugal é um país ainda muito ligado às convenções,pelo que os títulos, as marcas, o ir ao restaurante X e conduzir o carro Y tem muita importância. Infelizmente... Ainda bem que não fui educada assim. Mas conheço uma rapariga que é obcecada por todas essas frivolidades. Case in point: duas camisolas, da mesma marca - "Gosto mais desta mas aquela diz Guess maior, por isso vou ter de a levar". Deixámos de ser amigas nesse dia lol

Anónimo disse...

Ups, disse o meu nome... Fica entre nós :P

Woody disse...

Whisper

Durante muito tempo senti-me grato à praxe por causa das relações que lá criei... No entanto acho que isso é uma falsa questão: teve momentos divertidos? Claro que sim! Fizemos amigos? Também. A questão é que os amigos acabaríamos por os fazer na mesma e, se houvesse uma alternativa de integração mais criativa e não tão presa a supostas tradições teria sido muito mais divertido...

Eu nem me importava que isso passasse por os mais velhos mandarem nos mais novos como jogo. A ideia até pode ser engraçada. Mas sabes tão bem como eu que, para a maioria das pessoas, aquelas estúpidas relações de poder eram muito mais do que um jogo...

Iris

Bem-vinda de volta :)

As tuas mensagens não são de tanga. Isso do falar na 3.ª pessoa também é muito estúpido, um clássico dos jogadores de futebol... Não conheço muita gente que fale assim normalmente... A utilização do próprio nome durante a descrição de uma conversa chamou-me a atenção porque foi algo em que reparei recentemente e, desde aí, reparo que há cada vez mais pessoas a fazê-lo.

Outro tique de linguagem que me irrita é o dizer "é assim" no começo de cada frase... É a bengala mais irritante que pode existir porque dá a ideia que estão a fazer de nós atrasados mentais a quem se explica tudo e, por outro lado, dá uma entoação imperativa às frases que me incomoda muito. Tipo, "é assim porque eu digo que é assim".

Apesar disso tenho a consciência que as pessoas ganham estes vícios involuntariamente e, quando dão por ela, estão a usá-los ininterruptamente. Quando me apercebo que estou a apanhar uma mania destas faço logo um grande esforço para a perder...

Lu.a disse...

AAAAIIII, isso é tão português que até irrita!!!! Quando começam com o "Dr. isto" e "Engenheiro aquilo" dá-me logo vontade de dizer "ouça lá, a sua mãezinha baptizou-o "Dr xpto" ou "engenheiro xyz"??!
F****-se, a cagança tira-me do sério!!!! Uma cambada de mortos-de-fome armados em gente importante! (Aturos tantos, mas tantos no meu trabalho...).

Vê lá se descansas! ;)

Zlati disse...

Woody,

Já que te iniciaste nessa coisa dos desafios, tenho um para ti (caso ainda não tenhas feito esse:P) beijo e bom fim de semana!